"Cansei de ser rotulada. De ser dama, menina direita, moça de família. Cansei dos
espantos quando digo que gosto de cerveja ou que não sei cozinhar. Mas,
principalmente, dos absurdos que eu ouço quando descobrem que não quero casar ou
ter filhos.
Cansei de não saber dirigir, de gostar de rosa e de ser loira burra. De insinuarem que
meu sucesso profissional está associado à minha beleza – ou à falta dela. Cansei de ser
fofoqueira, consumista, dominar tarefas domésticas e não entender de futebol. De ser
ridicularizada porque namoro um cara mais baixo que eu. De ter que ser vaidosa e não
poder rachar a conta. Ah, e também estou farta de ser julgada em qual categoria me
enquadro, no de mulheres “pra namorar”, “pra ficar” ou “só pra comer”. Com que direito
instituem esse júri popular?
Cansei de ser puta. De não poder tomar a iniciativa quando estou interessada em alguém
e nunca – jamais – poder transar de primeira. É coisa de vagabunda oferecida, afinal.
Cansei de ser humilhada, envergonhada e destruída a cada vez que tenho cenas íntimas
expostas. De ser a “safada” e “vadia” que estava fazendo sexo, enquanto o meu
parceiro passa por despercebido – afinal, ele nunca será o vadio que se deixou filmar. E,
em hipótese alguma, será questionado o seu caráter ao compartilhar um momento a dois.
Cansei de me dar o respeito. De não poder me masturbar ou sentir tesão. Cansei de me
dar valor, quando ele está na medida do tamanho da minha roupa. Cansei de não poder
sair sozinha ou dançar à vontade, sem que alguém me olhe e diga: “Essa aí tá pedindo.”
Cansei de carregar a culpa. De não poder abortar. De ser abandonada e negligenciada
em uma gravidez indesejada. E, ainda assim, ser olhada com desprezo quando carrego
uma camisinha na bolsa. Ando exausta de ser autora das provocações sempre que sou
abusada, seja numa rua escura ou dentro da minha casa, pelo meu tio ou padrasto.
Cansei de gostar de apanhar. Queria, ao menos por uma vez, ser vítima da violência
doméstica por falta de informação, de coragem pra denunciar, de independência, de
estrutura emocional pra enfrentar a situação ou simplesmente por medo.
Cansei de ser submissa. De ver meu corpo vendido em comerciais de TV. De
namorados que querem me dizer o que vestir, quais lugares frequentar e como me
comportar. De pedir permissão ao marido para cortar o cabelo. Da vizinha que me
censura quando chego em casa com um paquera diferente, porque vou “ficar falada”.
Cansei de servir e obedecer. Cansei da sabatina insistente sobre o que eu posso e o
que eu devo.
Cansei dos pequenos assédios que passam despercebidos porque aprendemos a trata-los como normais. Cansei do instrutor da academia que alisa a minha perna, do colega
de trabalho que aperta minha cintura, do estranho no ônibus que se esfrega em mim e do
desconhecido que tenta me beijar à força num show. Estou exausta de andar às ruas
sob chuvas de “fiufiu”. Os “bom dia, linda” já ferem meus ouvidos tanto quanto os
“chupa aqui meu pau, gostosa”. E até mesmo os olhares indiscretos, que me fazem
sentir um pedaço de carne no açougue, já são o bastante pra me desestabilizar. Meu
espelho é testemunha de quantas vezes já troquei de roupa movida pelo desejo de me
camuflar à atenção masculina, na tentativa frustrada de evitar essas situações. Meus
pés estão calejados de tantas vezes que atravessei a rua fugindo delas. Estou cansada
de sentir medo.
Cansei também de felicitações. De mensagens vazias a cada 8 de março. Eu não quero
um dia feliz. Nem mesmo um mês dedicado a mim. Eu quero uma vida inteira com
dignidade, coisa que Bibi, Fran, Somali, Júlia, Eliza, Maria, Samara, Carmen, Jyoti, Eloá
e tantas outras não puderam ter. Eu quero descanso. "
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